Origens. Algumas pessoas passam a vida toda tentando fugir dela.
Família. Algumas pessoas passam a vida toda tentando fugir dela.
Não é à toa que as duas palavras estão tão intimamente conectadas.
O fato é que nossas origens e nossas famílias guardam pesos e segredos que muitos de nós morreremos sem revelar. E todas, sem exceção, guardam memórias. Boas e ruins. Memórias que nos moldam, que nos definem, que nos constroem ao longo da vida. Não importa o quão rápido, longe ou por qual razão você corra.
Essa é a essência de Era Uma vez um Sonho.
O novo longa do Netflix, que deve provavelmente figurar entre os indicados ao Oscar pela atuação de Glen Close e Amy Adams é a adaptação do romance Hillbilly Elegy e conta a história de J.D. Vance, personagem central que conecta toda a história. Inclusive a tradução literal “Elegia Caipira” cabe bem melhor ao contexto.
Deixe por um lado todo falatório sobre Oscar, esqueça o peso histórico dos atores que dão vida às personagens e concentre-se apenas na história. E se você, assim como eu, também tem suas origens (e família) em uma cidade do interior, então provavelmente encontrará na tela um espelho do que poderia ser a vida de muitos de nós.
E está mentindo quem disser que não tem essas “barbaridades” na família. Provavelmente essa mesma pessoa correu mais cedo e rápido demais para não ter tempo de tomar conhecimento sobre tudo…
Nascido no interior, J. D. é o jovem da terceira geração de uma família cheia de problemas (ou seja, qualquer família no mundo). Sua avó engravidou aos 13 anos e fugiu da cidade e do avô para começar a vida. E como todo casamento que começa assim, esse teve altos e baixos como o enredo manda. Das brigas que beiram o limite com a Memo ateando fogo no marido bêbado e abusivo e passarem a morar em casas separadas na mesma rua até a mesma Memo chorar a ausência do marido em seu enterro. O produto dessa relação foi Beverly, uma das duas filhas de Memo, enfermeira e com um comportamento instável, incapaz de manter relacionamentos e que perde de vez o caminho lógico da sanidade quando seu pai, até então seu protetor, morre. Essa mesma Bev é a mãe de J. D. e Lindsay. E enquanto a filha mais velha encontra refúgio no namorado, J. D. é mais um produto solitário dos dramas que vem de gerações em sua casa. Tanto que a instabilidade da mãe faz com que a avó assuma a criação do neto e tente dar a ele um norte para que tenha uma chance de vencer na vida.
E se você, também assim como eu, tem em uma família alguém com Memo, será quase impossível não se emocionar com as ações da vovó….
Perdi minha bisavó há três meses. Ela era a Memo em nossa família. Viveu 95 anos, 22 a mais que meu bisavô. E deixou lições importantes e únicas à sua própria maneira. É engraçado como essa geração pode ser tão semelhante em qualquer parte do mundo. O amor rude, a dureza recheada de carinho. Até mesmo a forma com que Memo atira o saco de batatas para o neto na mesa era idêntica a minha bisa… Pra não falar nos óculos e cabelos rs….
Memo passou tempo demais defendendo Bev a ponto de não conseguir mais ajudá-la. Tudo com a intenção de que Bev tivesse uma vida melhor que a dela. Falhou e sabe de sua culpa. Mas tenta corrigir isso no neto.
Matriarcas, elas são o esteio da casa. E quando se vão, tudo fica um pouco em suspenso e perdido…
E justamente quando mais uma das crises de Bev podem colocar a perder tudo que J.D. conquistou, os ensinamentos de Memo se tornam mais fortes e seu legado ressurge. J. D. sabe que, com a partida de Memo, é dele a responsabilidade de tomar conta da família. Mas ele também sabe que sem lutar por sua chance não poderia oferecer apoio algum.
Some à tudo isso as características típicas de uma cidade do interior… Julgamentos, fofocas, uma calmaria que por vezes chega a irritar.
A linha temporal do filme é formada pela trajetória de J. D. no retorno pra casa para cuidar de uma mãe internada com overdose cruzada com memórias que ajudam a compor o quebra cabeça familiar.
E se faltou uma mão certeira pra essa mixagem funcionar melhor, sobrou talento do time em tela pra dar vida ao que muitos de nós tem vivenciado em nossas próprias jornadas ao longo dos anos.
Glen Close travestida de Memo é a encarnação de qualquer avó perfeita. E quando você vê as cenas reais nos créditos finais, fica ainda mais ridente o quando ela incorporou o papel. A mulher elegante que se veste de Cruela nem de longe parece estar por trás de óculos antigos e um andar arrastado.
Amy Adams, por sua vez, quebra de uma vez por todas o estereótipo da mocinha. Conheci Amy pela primeira vez em “Muito bem Acompanhada” e não achava nada nela. Depois veio “Encantada” para colocar a jovem no mapa e com “Casa Comigo” ela ganhou a atenção dos apaixonados por comédias românticas. Mas foi em longas como “Grandes Olhos” e “animais Noturnos” que ela elevou o nível e passou a figurar entre as estrelas quase oscarizadas.
Com Glen Close, ela compartilha a marca das onze indicações e nenhuma vitória até o momento…. Será que isso pode mudar pra uma das duas agora?
Já o jovem Gabriel Basso traz para a tela a representação do nosso eu mais interior. Aquele que não deixamos ninguém ver. Que sente raiva, angústia, medo, revolta, amor, mágoa e preocupação tudo ao mesmo tempo. Que rala mais que o impossível pra conquistar a tão sonhada chance” que toda família vê como o marco de mudança para as próximas gerações. Aquela pela qual todos se realizam um pouco, buscando ali conforto por tudo que não conquistaram.
A grande diferença do J. D. em cena e os muitos J.D.’s da vida real é que nem todos assumem a origem e a defendem como o garoto o faz…
Eu não sei se “Era uma vez um sonho” será um filme oscarizado no futuro. Mas certamente sempre será um filme realista sobre a histórias que muitas famílias vivenciam todos os dias mundo afora…