Criador do tradicional estouro do Judas, evento que comandou com paixão e pessoalmente durante anos em Itu/SP, Zico Gandra morreu na última madrugada, vítima de insuficiência respiratória e falência de múltiplos órgãos.
Mais do que um legado cultural e histórico para a região, essa personalidade deixou uma passagem tragicômica em minha vida….
Tudo começou com uma aula de história da arte que nem minha era… Meu irmão estava no 1º ano do ensino médio, e voltou para casa inconformado com um bate-boca que aconteceu em sala de aula… Mais revoltado do que ele, fiquei eu depois de saber do acontecido.
Presta bem a atenção. Era uma aula de história da arte, de uma professora nascida e criada em Itu (Meio louca, mas um pouco de loucura todo mundo tem, então até aí nada contra). Logo, era de se esperar que ela, mais do que ninguém, conhecesse muitíssimo bem as tradições da cidade. Pois não é que a infeliz teve a insensatez de matar o Zico Gandra enquanto o homem ainda tava vivo!!! Eis que na aula em que ela explicava sobre a tradição do estouro do Judas e tudo mais, ela surtou (só pode ter sido surto isso!) e disse pra sala que o criador – o Zico Gandra – já tinha morrido (mentira – parte 1) e que não acontecia o estouro na cidade há alguns anos (mentira – parte 2). Em uma frase ela conseguiu assassinar um homem e décadas de uma tradição que até hoje permanece vivíssima na cidade!!!!!!! E o pior: era professora de HISTÓRIA DA ARTE!!!!!!!!!!!!!
Fiquei inconformada….. Queria pegar a mulher e levar ela na casa do homem na hora!!! Ele morava na rua de cima de casa, então cheguei à conclusão que o senhorzinho que eu via religiosamente sentado olhando o movimento da rua no final da tarde, todos os dias, quando eu voltava do trabalho, só podia ser um fantasma!!!! E o estouro do Judas, que mudou do Estádio Municipal para a Praça da Matriz hà alguns anos, certamente era mais um delírio meu!!!
Eu enlouqueci! Precisava fazer alguma coisa, dedurar ela pra direção da escola, mandar cartas com fotos do fantasma, levar ele para dar uma palestra sobre o estouro do Judas na escola ou levar ela pra encarar o fantasma, sei lá!! Qualquer coisa!! Só não conseguia aceitar a idéia de que uma PROFESSORA DE HISTÓRIA DA ARTE NASCIDA EM ITU pudesse cometer tal barbárie…..
Falar que o Zé ou a Maria, uma personalidade do bairro da sua prima, morreu… Tudo bem… Ele é personalidade do bairro da sua prima… Mas o Zico Gandra era uma personalidade conhecida nacionalmente (arrisco até dizer internacionalmente em alguns casos) pelo seu legado cultural, pombas! E ela, repito, PROFESSORA DE HISTÓRIA DA ARTE!!!! É quase a mesma coisa que um padre errar a Divina Trindade!!
Enfim, no fim contive meus impulsos para não prejudicar meu irmão, que ainda teria de encarar a tal herege por mais dois anos. Mas nos dois anos seguintes eu bem que quis levá-la para ver o estouro do Judas na Páscoa. E continuava afirmando estar diante de um fantasma todo dia à tardinha…..
Provavelmente você está se perguntando o por quê de tanta revolta da minha parte…. Não é nem pelo fato dela ter matado o homem que tava vivo… Isso a gente pode fazer sem querer, acontece (mesmo sendo absurdo no caso dela ser uma PROFESSORA DE HISTÓRIA DA ARTE)… O mais revoltante é ela não ter voltado atrás nem mesmo quando meu irmão comentou, sem qualquer intenção de confrontá-la, mas apenas de comentar o fato mesmo, que ela deveria ter se enganado, pois o homem morava na rua de cima de casa e nós o víamos todos os dias. Ela continuou batendo pé firme, que meu irmão estava louco, e nem uma sala inteira espantada com aquela história que não fazia muito sentido a fez mudar de idéia…. Puxa vida, errar é humano… Mas o mais louvável é termos a coragem de admitir quando cometemos um engano. E a escola está lá pra ensinar, mais do que teorias que qualquer livro ensina, os bons modos e as coisas da vida! Tudo aquilo que forma um ser humano!
A classe já deve até ter esquecido tudo isso, mas pra mim foi difícil de engolir…. Na época, eu trabalhavano contas a pagar do grupo educacional do qual a escola fazia parte, e a parte mais difícil era ter que preencher o cheque dela todos os meses, pensando que eu estava fazendo o pagamento da PROFESSORA DE HISTÓRIA DA ARTE QUE ASSASINOU O ZICO GANDRA AINDA VIVO enquanto uma porção de outras boas professoras estavam na rua desesperadas por um emprego, sendo que nenhuma delas tinha matado o Zico Gandra…. Era dramático… Ela pode até ser boa professora, tem muita gente que adora ela e eu não tiro o mérito. Mas pra mim foi o fim…. Trágico como a morte e cômico como a mais inacreditável piada….
Pois hoje tivemos a triste notícia de que o Sr. Zico Gandra morreu de verdade, aos 95 anos, vítima de insuficiência respiratória e falência múltipla de órgãos. Sei que foi muito feio isso, mas na hora que soube os meus impulsos de confrontar a dita cuja voltaram à tona. A idéia era mandar pra ela todos os anúncios, notícias e qualquer nota publicada sobre o fato. Mas acho que não é justo revirar a pobre alma do homem no túmulo porque uma PROFESSORA DE HISTÓRIA DA ARTE não fez a lição de casa direito….
Zico Gandra foi marceneiro, carnavalesco e até construtor de carros alegóricos, mas ficou conhecido em toda a região pela tradição do Estouro do Judas. Ainda menino, começou a participar da festa como aprendiz. Depois, durante décadas, esteve à frente do espetáculo que, em Itu, é diferente de outras cidades: em vez de malhar o Judas, ele é estourado com fogos no domingo de Páscoa.
A prefeitura da cidade decretou luto oficial de três dias. E eu terei para sempre sua memória como um intangível legaldo histórico cultural e uma das passagens tragicômicas da minha vida….. rs
Perdoe minhas brincadeiras infelizes e descanse em paz, Sr. Zico. Sua ausência no banquinho ao final da tarde será notada todos os dias, mas a tradição criada por sua vivência permanecerá para sempre viva em nossa cidade e nosso corações.