Por algumas vezes eu pensei que nunca precisaria publicar essa carta. Mesmo já sendo escrita e reescrita há alguns anos, muitas vezes você me fez acreditar que eu poderia deixá-la de lado para sempre. Mas agora estou aqui, lutando com as lágrimas para enxergar o teclado e tentando não sufocar pela dor que toma o meu coração.
A tristeza do luto é uma dor diferente. Tudo parece ficar em suspenso. Você não sente mais frio ou calor. Não sente fome. Sente um sono pesado e não consegue dormir. É como se, instantaneamente, você estivesse em um pesadelo, como se tivesse perdido seu equilíbrio, sua capacidade de discernir o real e a fantasia.
O tempo parece, de repente, se arrastar (e te arrastar com ele)….
E o tempo algumas vezes pode ser cruel. Ahhh, o tempo…. Um verdadeiro mestre das ilusões, sempre pronto com seu golpe de traição por trás de sua beleza.
Todos sabemos que há duas coisas impossíveis de controlarmos: a finitude da vida e o tempo. Mas jamais saberemos como a ligação entre eles recairá sobre nós ou aqueles que amamos.
Algumas vezes a vida acaba de maneira repentina e inesperada, sem chance de preparo. Mas quando ela segue o ciclo natural, sempre recebemos algum tipo de aviso. Outras vezes, muitos avisos, em forma de complicações, doenças, riscos (e mesmo assim nunca estaremos realmente prontos para enfrentar a dor da ausência).
Eis então que em certas ocasiões o tempo, um vilão silencioso, decide nos iludir e começa a esticar o limite para além do esperado. Do nada, ele simplesmente reabastece um contador em branco. E ao invés de apenas nos sentirmos gratos, transformamos aqueles pequenos milagres de prorrogação do tempo em esperança. Uma esperança vã de que aqueles que amamos possam ser, talvez, imortais.
E o tempo foi especialista em fazer isso com a gente, Perolinha. Suas quase mortes declaradas foram tantas desde tão novinha e tão frequentes depois dos seus 14 anos que só nós sabemos quantos altos e baixos essa montanha russa teve. Perdi as contas de quantas vezes me despedi de você com medo de que você partisse sem ouvir as palavras, ou simplesmente pra te libertar de ir tranquila sem se preocupar com a gente aqui, morrendo de saudade.
Mas você, que era o foco das emoções, era também o nosso maior esteio. Era quem nos mantinha de pé. Era quem mostrava que nunca podemos perder a alegria, não importa quão dura seja uma adversidade.
Até que chegou o momento que esperávamos como certo há pelo menos cinco anos, mas que você, uma pequena Highlander com seu jeito especial, adiou o máximo possível pra nos manter rodeados de amor por um pouco mais de tempo…
Você chegou toda pequena e desengonçada pra preencher de alegria os meus dias ainda tão tristes de saudades da Pepê.
Mas não veio pra substituir. Até porque seria impossível. Não tinha como vocês serem mais diferentes em temperamento. Mas com um amor tão grande em cada coração…
E na mesma proporção que veio pra trazer alegrias, um belo dia deixou claro que no pacote também vinham surpresas e preocupações. Fez nossos corações quase saírem pela boca algumas vezes. Mas na mesma dose mostrou que estava pronta para superar cada uma delas de cabeça erguida. Não era gato, mas colecionou bem mais que sete vidas. E transformou a nossa de um jeito especial…
Sua vida que quase acabou aos 4.. E aos 14… E aos 16… 17…. Chegou aos 18 anos, 3 meses e 8 dias…. Que em idade humana seriam lá seus 98 aninhos. Uma vida inteira permeada e alimentada por tanto amor que te fizeram ir além de qualquer expectativa…
Alérgica, cegueta, cardíaca, atropelada, com um (ou mais) AVCs na conta, artrite, artrose, pancreatite, ranzinzice, Alzheimer e uma força e alegria heróicas.
Aos 18 você tinha a mesma alma de quando só tinha 18 dias. Era como um bebê no corpo de uma velhinha. Só nos últimos anos o peso do tempo começou a se mostrar mais duro, em especial neste último ano. Mas acompanhar seu envelhecimento junto com a bisa nos ajudou a identificar com mais facilidade os sinais, pra que pudéssemos te dar o conforto e a qualidade de vida necessários. Aliás, que dupla essas guerreiras duras na queda!
Mesmo no adversidade, você nunca desistiu ou esmoreceu. Nos ensinou que envelhecer pode ser maravilhoso. Que teremos sim dificuldades, muitas. Mas que com um pouco de calma, muita perseverança e uma dose de resiliência é possível ter uma velhice cheia de alegrias e ainda espalhar um pouco dela ao seu redor.
Essa vontade linda de viver deixará para sempre muitas lições em nossas memórias e um amor infinito em nosso coração.
É assim que sempre vou me lembrar de você… Alegre, doce, espoleta e uma eterna filhotinha danada, mesmo quando já era uma velhinha senil… Você nos trouxe felicidade e lições gigantescas sobre força e resiliência.
Minha cãopanheira de aventuras, que amava andar de bike, jamais dispensava o prazer de um ventinho no rosto, mesmo que fosse no quintal de casa, e trocava qualquer bifão por um talo de alface.
Metade da minha vida, literalmente, eu vivi ao seu lado. E foi a minha melhor metade. Você foi luz e alegria, o tempo todo, até o fim.
Nossos corações, por enquanto ainda dilacerados, sempre manterão sua memória viva por aqui cada vez que olharmos pra cima ou pra um pedacinho de lembrança que você deixou…
Sua sombra no pé enquanto preparávamos almoço, pedindo alface, invadindo geladeiras e armários, apaixonada por brincar com garrafas pet, me expulsando de casa à noite, famosa e querida por todos no bairro, cara de pau pedindo carinho pra qualquer estranho que passasse ou querendo rua como uma Maria gasolina, pedindo pra abrir a porta da rua pra ficar na garagem bisbilhotando a vizinhança, se enfiando na primeira bolsa, caixa ou bacia que aparecesse, surfando na cestinha da bicicleta como uma profissional, suas mordidas tardias ainda com todos os deus dentes devidamente presentes e afiados na boca, sua língua quilométrica caindo da boca após um passeio de domingo, comendo de ponta cabeça ou dormindo com a barriga pra cima, o pescoço totalmente quebrado e abaixo do corpo ou a bunda pra fora da cama, sempre…
Vou sentir sua falta em cada pequeno detalhe, ao meu lado enquanto trabalhava, na saidinha no meio da manhã para sua caminhada, ao olhar pra cestinha vazia na minha bicicleta, tentando comer (ainda escondido) algo que você gostava, ao ver a lua cheia ou só de te carregar e apertar do nada, com a certeza de ter o bem mais precioso do mundo em meus braços. Quando tudo conspirava para tornar o dia um verdadeiro apocalipse ou tristeza, você era o nosso raio de amor e alegria sempre pronta para nos resgatar do abismo e nos arrancar sorrisos tão fáceis. Me lembrarei sempre de você com meu coração explodindo de carinho toda vez que o vento soprar em meu rosto ou que um talo de alface estiver no meu prato.
Minha veínha, minha nenezinha, minha fofuxinha, minha gordinha, minha fofenha, meu amorzinho, meu bem, minha cegueta… Queria ter engarrafado o cheirinho da sua pata pra sempre ter você por perto quanto sentir saudades… Mas sabemos que fizemos tudo e mais um pouco para que você tivesse todo conforto possível e fosse muito amada e feliz aqui… É a guerreira mais meiga que já conheci. E jamais será esquecida. Mas a saudade ainda tá doendo tanto…
No próximo domingo faremos nosso último passeio juntas (fisicamente). Vou te levar para descansar no lugar que você mais gostava, espalhar suas cinzas pelo Parque Ecológico do Taboão, onde compartilhamos tantos momentos simples e da mais pura alegria juntas. Só olhar você caminhando em pulinhos, com a língua de fora ou suas orelhinhas voando no vento eu sentia uma felicidade absurda, em sua forma mais genuína, e serei eternamente grata por isso. Sempre que sentir saudade eu sei que posso ir até lá e sentir ao seu lado um pouco da paz e tranquilidade que tanto gostávamos juntas. Será o nosso lugar especial para sempre.
Agora vai se juntar à nossa Penélope pra olhar por nós de um lugar onde seu coração pode bater com toda força sem medo de ser feliz e sentir o vento sempre que quiser. Descansa seu merecido repouso, Perolinha. Você entregou muito mais do que qualquer um esperaria. Mesmo nos dias mais difíceis, você era só luz e alegria. Obrigada por tantos anos ao nosso lado e tudo que significou pra nós, nossa eterna Pérola, joia de amor e felicidade. ❤️🐾
