Cidade Invisível é uma produção original Netflix e chegou em fevereiro com um pacote que mistura suspense policial e mística pra mostrar que o país não é bom somente em novelas…
Mas antes de adentrarmos no contexto principal deste post, precisamos desmistificar dois pontos críticos:
1) O brasileiro ainda tem preconceito sim e não sabe dar o devido valor à produção nacional (e não estou criticando apenas você, pois me incluo nessa crítica). Por muito tempo fomos bombardeados com a ideia de que apenas os americanos eram capazes de dominar as grandes telas e à nós cabia a expertise em novelas. E muitas obras que poderiam ser potenciais foram vítimas dessa crença até mesmo em sua processo de criação. Mas para nossa alegria esse contexto está começando a mudar, graças a produções como Cidade Invisível, mas ainda tem chão pra quebrarmos aquela película natural que nos cega sempre que o assunto é uma nova entrega no cenário do entretenimento brazuca.
2) Por causa do motivo 1, o brasileiro ainda acredita que uma produção nacional de valor obrigatoriamente precisa seguir os estereótipos comuns das obras mais aclamadas, como o retratar o Nordeste, a favela ou a pobreza graças à herança valiosa de clássicos como O Auto da Compadecida, Cidade de Deus e Central do Brasil, que abriram portas para o destaque da produção brazuca no cenário internacional. E naturalmente não tiro o mérito dessas obras de forma alguma! Ao contrário, elas são essenciais para conquistarmos novos degraus. Mas o Brasil não é só isso e tem sim obras paralelas incríveis sendo feitas por aí, na TV aberta, no streaming e nas telonas. Verdades Secretas, Coisa Mais Linda, Sob Pressão, 3%, Bom dia Verônica, Desalma, Sessão de Terapia… Elas vêm tentando, mas ainda não conseguiram emplacar uma mudança forte. Mas parece que Cidade Invisível tem o poder de redirecionar nossa trajetória não apenas pela percepção nacional, mas pelo resultado internacional (porque sim, ainda somos influenciados pela opinião dos estrangeiros mais do que a nossa própria).
Dito isso, você pode imaginar que Cidade Invisível não fala da essência brasileira. Mas está errado. Ela retrata um tema brasileiríssimo, mas por uma ótica totalmente diferente do que estamos acostumados. A verdade é que a produção ganha um contexto que facilmente poderia torná-la uma obra norueguesa, islandesa ou de qualquer outro país não americano q você ainda não conhece tão bem mas que tem apresentado excelentes produções originais através da Netflix (e aqui vale um post a parte com indicações ótimas para os apaixonados por séries policiais – em breve!).
Pois é justamente com uma pegada típica de suspenses policiais que somos apresentados ao mundo do sobrenatural e mágico do folclore brasileiro. A fórmula da realidade policial com a mística regional que tem criado tantos sucessos no streaming nos coloca lado a lado com grandes criações mundiais de um jeito que chega a dar orgulho.
O título apresenta a história de Eric, policial ambiental que perde a esposa em um incêndio florestal muy suspeito e acaba encontrando um boto rosa morto na praia do errejota alguns dias depois, iniciando uma trajetória surreal que revelará muito mais do que a trilha do assassino de sua mulher, mas também do seu próprio passado e sua verdadeira origem.
Agora fala se essa sinopse parece uma série brazuca se não fosse pelo boto rosa? E fala se não é instigante?
[ATENÇÃO: A PARTIR DAQUI VOCÊ ESTÁ SUJEITO A SPOILERS]
Pois é assim, episódio após episódio. Uma sucessão de fatos intrigantes que criam um enredo envolvente com personagens sobre os quais passamos a vida toda ouvindo a respeito… Saci Pererê, Curupira, Sereia, Cuca…. Mas nesta obra criados por meio de uma releitura para adultos que torna tudo muito mais interessante. Essa liberdade criativa é que dá o tom certo para a série não ser apenas mais uma forçada de barra apelando para o contexto brasileiro. A ideia aqui não é o país no centro do contexto. Mas ele está lá, nos detalhes, permeando toda a essência, desde os problemas político-ambientais relacionados à defesa das áreas florestais até as crises econômicas e sociais das ocupações públicas compartilhadas pela população mais pobre (e aqui eu acho que a série até pegou leve ao retratar personagens com um filtro que quase não reflete a realidade mais dura e escrachada que vemos na vida real). O país é o cenário que costura a história, mas não o apelo. E essa é a mágica pra fórmula funcionar de um jeito diferente e tão bom.
Quem costura essa teia é Carlos Saldanha, responsável pela produção da série. Certamente sua passagem pela cinema mundial (ele está em A Era do Gelo e Rio) ajudou muito a criar essa resultado.
À frente do elenco está outra peça já experiente no streaming: Marcos Pigossi. Depois de encenar australiana Tidelands (que também envolve um contexto místico, mas não deu liga do roteiro não… não consegui acompanhar) e a espanhola alto Alto Mar (está na lista, mas ainda não vi), ele finalmente tem a oportunidade de estrelar uma obra nacional promissora e colocar seu portfólio em dia com o país. E ele não desaponta. Poderia ser colocado lado a lado com Yoann Bland, que encabeça a série policial belga La Treve (fantástica!!!), ambos enfrentando fantasmas e lutando para dar uma boa vida como pais solitários para suas filhas.
Sua parceira em cena, Áurea Maranhão, que interpreta a policial Márcia, já não parece tão a vontade. Mas é uma peça importante para interligar algumas pontas do roteiro.
Mas não dá pra negar que o elenco místico da série é quem ajuda a trazer o grande arremate ao todo. A história os explica como humanos que se tornaram criaturas mágicas e se infiltraram na sociedade como cidadãos de identidades comuns para sobreviver. Alessandra Negrini cria uma Cuca tão complexa que consegue ser vilã e mocinha ao mesmo tempo, amável e odiável. E com toda sua experiência em tela ela guia todo o grupo de figuras folclóricas da trama: Boto Cor de Rosa, Saci, Curupira, Tutu, Sereia…. Ah, a Sereia…. Mesmo que você não acredite em nada sobrenatural e ache mitos folclóricos um saco, não resistirá ao canto perfeito de Jéssica Corés. Sua versão de “Sangue Latino” é uma reverência à Ney Matogrosso, quase inebriante, capaz de causar no espectador o mesmo efeito que causa em. Eric…
Ainda entre as criaturas quem também merece destaque é o Curupira. Fabio Lago é nosso velho conhecido de obras nacionais televisivas e do cinema, sempre com atuações fortes e intensas. E carrega toda essa experiência para a série, criando uma transformação agressiva no retorno à forma mais natural de sua criatura.
Esse post aqui do Jovem Nerd faz uma explicação bacana e mais detalhada sobre as lendas que aparecem na série: veja aqui.
E, por fim, não podemos deixar de citar a pequena Manu Dieguez, que interpreta Luna. A menina pode concorrer fácil em ser a próxima Samantha do cinema de horror. Automaticamente classificada sem dificuldades…. Aliás, mais um ponto pra série em adotar a reviravolta que coloca a inocente no papel de vila temporária (e aqui os viciados em série e suspense policial provavelmente adivinharão antes do público comum essa sacada).
Toda essa pegada “diferentona” torna a série menos pastelão do que se fosse abordada nos cunhos originais da mitologia folclórica tradicional. Isso é modernidade, liberdade criativa e releitura para uma nova geração que precisa de fórmulas interessantes para aprender.
Talvez com tanto a dizer, sua falha seja justamente não explorar tão bem as histórias por trás de cada personagens, entregando resumos rasos para caber tudo que é necessário em cada capítulo. Mas se eu fosse professora, certamente seria uma premissa bem mais interessante para ensinar os adolescentes de hoje a conhecer melhor e valorizar a história, as crendices e a mitologia nacional brasileira.
A série já está entre as mais assistidas do Brasil e tem tido uma excelente recepção lá fora também, figurando entre as top 10 em mais de 40 países. E como é lindo ver a nossa herança cultural chegar à tantas nações que sequer sabiam desse lado brasileiro! A boa recepção por enquanto reserva apenas uma crítica, que é justamente o pouco espaço para a abordagem de cada personagem mítico, o que mostra que a galera ficou com gostinho de quero mais e isso é bom!
Com oito episódios, a primeira temporada termina com a deixa para uma segunda engatar caso os resultados sejam promissores a ponta da Netflix pensar em uma renovação. E a gente fica na torcida para que sim… Não apenas para acompanhar o que acontece agora com a nova visão de vida de Eric, mas pra que essa série possa abrir portas para outras produções brasileiras conquistarem espaço com novas abordagens e ajudarem o Brasil a ganhar mais notoriedade e oportunidades também no mundo das séries.
Estreou no dia 05 de Fevereiro, devorei entre sexta e sábado rapidão e já querendo mais….
Confere aí: Cidade Invisível
Essa crítica aqui sobre a série também é bem bacana se quiser saber mais:
Crítica: Cidade Invisível aborda o folclore e é uma boa série na Netflix