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A voz do coração

A relação do homem com a música vai muito além de melodias e letras. E é sobre isso que fala o longa “A voz do coração“, uma bela descoberta entre os tesouros guardados pelo Netflix.

Mas apesar da semelhança com o nome e a temática, não estamos falando de “O som do coração” (outro longa lindíssimo que também tem a música como pano de fundo para a história do pequeno August Rush, filho de dois músicos que, órfão, reencontra seus pais através de seu incrível dom natural para… a música!). Não. “A voz do coração” também tem orfãos e música, mas em outro cenário e contexto.

Já tinha visto esse filme uma madrugada dessas, mas semana passada quando estava zapeando pelo catálogo e o vi, decidi que era hora de rever e sentir mais uma.vez as emoções que o diretor francês Christophe Barratier consegue arrancar do espectador com uma linda história sobre dificuldades, sofrimento e o poder da música para transformá-los.

Contém SPOILERS!

A trama conta a trajetória de Clément Mathieu, um músico derrotado que assume a função de supervisor em um orfanato de meninos carentes conduzido à mão de ferro pelo diretor sem moção Rachin, que caiu de para quedas em sua função e desconta todas as suas frustrações nos meninos com a política do ação-reação. E é justamente essa postura do diretor que tem mantido o orfanato como uma fábrica de pequenos monstros por anos, onde cada travessura é tratada com violência e castigo. A educação passa longe dos métodos do diretor (qualquer semelhança com a nossa realidade em tantas escolas públicas no Brasil hoje infelizmente não é mera coincidência…).

No meio desse furacão, Mathieu chega para substituir um supervisor que está deixando o cargo após ter sido atacado por um garoto com uma tesoura e levar dez pontos no braço. E as boas vindas são impactantes: além de toda (falta de) cordialidade do diretor, Mathieu testemunha Maxence, outro supervisor local, ser vítima de um atentado violento com uma armadilha na porta que quase o cega. E é ao se despedir de seu antigo dono do cargo que Mathieu descobre o culpado e os nomes que são cartas marcadas na escola. Todos sabiam o que acontecia, mas confrontar os meninos era o mesmo que se tornar uma nova vítima deles na cultura de ação-reação criada ilusoriamente por Rachin para lhe dar poder e autoridade. Mas apenas ele não entendia que sua reação gerava uma nova ação dos garotos, muitas vezes completamente inconscientes das consequências de seus atos por uma infância sem estrutura, formando um ciclo infinito de tortura aos alunos e professores.

Apenas Maxence parece se compadecer dos meninos e ver o que havia por trás da revolta que agia como um escudo para o medo e a solidão. Enquanto muitos dos meninos eram órfãos da guerra ou de pais que não podiam cuidar deles, outros estavam lá para que tivessem uma vida melhor do que em seu próprio lar. No orfanato ao menos teriam duas refeições quentes por dia…

Com um olhar atento, Mathieu entende o terreno em que pisa logo no primeiro dia e busca seus próprios caminhos para transformar esse pequeno mundo. Ao invés de repreender os meninos pelas táticas de Rachin, ele se alia à eles protegendo-os do diretor e aplicando seus próprios “castigos” para que aprendam lições sobre valor, dignidade, honestidade e caráter. Claro, não sem enfrentar a rebeldia dos meninos até conquistá-los.

Mas é através da música que o supervisor encontra caminho para ganhar a atenção e o coração dos meninos. Entre os pequenos talentos está Morhange, personagem que narra toda história ao ler o diário que Mathieu escreveu durante seus dias no orfanato.

Ao perceber que a música pode ser o ponto de equilíbrio para os garotos, Mathieu começa a desbravar esse mundo e forma um coral, que irrita o diretor Rachin, mas transforma a atitude dos garotos e reduz os atos de indisciplina na escola. Mas ao perceber que os métodos de Mathieu são melhores que o seu, Rachin proíbe e encerra o projeto do coral (sempre tem um idiota no caminho… na ficção e na vida…).

Mas Mathieu persiste na ideia e mantém aulas em sigilo com os.meninos no dormitório à noite. E até mesmo os supervisores que eram adeptos à cultura ação-reação de Rachin mudam sua visão sobre Mathieu e adotam uma nova postura com os garotos e a escola, os ajudando a acobertar o coral clandestino. Até que o sucesso do coral chega aos ouvidos da Condessa e demais patrocinadores do orfanato, que pedem para ver os meninos em ação. E a apresentação é tão tocante que até os mais durões se comoveram.

Garotos entristecidos e endurecidos por uma vida difícil, sem carinho, sem estrutura ou noções de moralidade. Todos transformados em pequenos homens que, mesmo sem uma única direção a frente, viram uma oportunidade de se agarrar à algo maior, ao amor e dedicação de alguém que fez algo grandioso por eles: lhes deu atenção, valor é mostrou que suas capacidades vão muito além do que poderiam imaginar.

Rachin se vangloria dos louros como se fosse uma iniciativa sua (claro) e é indicado a ser condecorado. Mas durante sua ida ao evento, o orfanato é incendiado por Mondain,  um ex-detento infantil trazido para a escola como uma tentativa de experimentar uma nova metodologia de adaptação à garotos alfabetizados. O garoto-problema já não está mais no orfanato, tendo sido expulso por roubo de todas as economias da escola e devolvido à prisão. Mas ao ser solto e fugir, ele retorna para se vingar de Rachin com um incêndio. E Rachin vê sua glória desaparecer com as cinzas.

A sorte é que Mathieu, desobedecendo nais uma das regras de Rachin, tinha levado os meninos para um passeio na floresta, pensando em como os garotos se entristeciam com os dias bonitos por estarmos presos em muros sem jamais saber o que havia mundo afora. E isso salvou suas vidas, ou estariam todos mortos no incêndio.

Rachin demite Mathieu e o proíbe de se despedir dos meninos. E enquanto, por um momento, o supervisor lamentava os meninos não terem se rebelado para lhe dizer adeus, ele é surpreendido por uma enxurrada de aviões de papel saindo de uma alta janela do colégio ao som do coral em ação: eram milhares de bilhetes de adeus, agradecimento e carinho ao mestre e amigo que tanto os ensinou (uma cena simbólica e emocionante).

Rachin acaba denunciado e os supervisores do colégio depõem contra ele, resultando na demissão do diretor sem escrúpulos e noção.

E no final do filme, enquato Mathieu segue seu caminho rumo ao ônibus após a demissão, alguns passos ligeiros o seguem. Eram de Pépinot, um garoto órfão de pais mortos na guerra que todo sábado esperava por seus pais no portão e protegido por Mathieu durante sua permanência no colégio contra os abusos de autoridade dos mais velhos. O garoto pede para Mathieu levá-lo consigo. E foi nem um sábado a tarde que a demissão de Mathieu transformaria o sonho do pequeno Pépinot em realidade…

É esse mesmo Pépinot quem, 50 anos depois, no início do filme,vai levar o diário de Mathieu para Morhange, o menino problema com cara de anjo que se tornou um grande músico graças aos ensinamentos de Mathieu. Sua mãe é outra personagem importante do filme: mãe solteira, deixa o menino no orfanato porque precisa trabalhar e acaba conquistando o coração de Mathieu, mas ele não é correspondido.

Tocante, sincero e realista, “A voz do coração” fala sobre o poder da música e como a paixão pelo que fazemos podem transformar pequenos universos e realidades. Enquanto ninguém acreditava no futuro dos meninos, Mathieu investiu neles e se dedicou a mostrar que existe oportunidade para quem deseja ir além do que a sociedade nos faz crer que podemos. Fala sobre compaixão, amor ao próximo e esperança.

É uma pequena pérola francesa que merece ser vista e apreciada…

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