A refilmagem de uma das novelas mais icônicas da televisão brasileira trouxe de volta à vida o espírito desaparecido das novelas na TV, com direito a uma cenografia hipnotizante e interpretações de aplaudir.
18 anos. Há exatos 18 anos eu não assistia uma novela. Posso até ter visto partes ocasionalmente, mas não tinha o hábito de acompanhar uma telenovela na íntegra há 18 anos, desde que Nazaré Tedesco derrubou metade do elenco da televisão brasileira escada abaixo.
E devo dizer que antes de abandonar esse hábito eu vi muuuuuita novela. Eu e todo e qualquer brasileiro, né. A telenovela é uma herança cultural inegável.
Aí veio a faculdade, a pós, as séries, o streaming. E pouco a pouco a novela foi morrendo… Tramas cada vez mais sem graça, mais do mesmo, entrega de conteúdos sem inteligência e muita modinha apenas na insana busca cega pelo ibope. Larguei mão, como diriam os Leôncios… A novela de repente ficou chata. E era muito mais legal acompanhar séries. Mais curtas, podiam ser vistas quando eu quisesse e tinham conteúdos mais consistentes.
Até, que 18 anos depois, o canal mais consagrado do país quando o assunto é novela anunciou a reprise de uma das telenovelas mais famosas de toda a historia: Pantanal. Aquela Pantanal da uma TV Manchete que nem existe mais, que lançou Cristiana Oliveira ainda menina como a Juma que vira onça, botou o Sérgio Reis na TV e marcou toda uma geração. Aquela Pantanal que eu era criança demais pra ver e só conhecia de história e fama.
Minha primeira reação natural foi a desconfiança. “Reprise não dá certo. Eles modernizam e não fica bom. Nem vou ver. Nunca faz jus ao original“.
A segunda reação foi a curiosidade… “Mas se quem vai dirigir é o neto do Benedito Ruy Barbosa, será que ele vai se manter mesmo fiel à trama? E esse elenco parece que vai ser pesado hein.. Mas eles vão gravar no pantanal mesmo?“
E a terceira foi o preconceito. “Ahhh, novela não né Letícia.. Você saiu dessa vida.. Tanta coisa melhor.. Vai ficar presa em novelinha da Globo”?…
Eis que há sete meses o pensamento dois venceu e, movida pela curiosidade, resolvi conferir os primeiros capítulos sem compromisso. Só pra ver qualéqueera….
Paguei a língua e assinei um contrato de relacionamento sério com a Globo no horário nobre por quase sete meses… É mais do que muito namoro que já tive na vida. A diferença é que esse valeu a pena.
Bruno Luperi, neto de Ruy Barbosa, ao lado de uma equipe de peso na direção, construiu uma obra primorosa que não apenas respeitou, mas elevou com honras a lembrança e legado da obra de seu avô. Quase como se fosse um Leôncio cuidando da sela de prata do outro.
Mesmo que a trama fosse uma droga, já teria válido a pena pela produção cenografia. Que qualidade! Com captações cinematográficas que usaram a tecnologia a favor das belezas naturais, Pantanal reconstruir completamente o conceito de fotografia das novelas de horário nobre. É que delicia ver o nosso Brasil e Pantanal retratados com tanto amor e cuidado. Um verdadeiro tesouro tratado pela mão de restauradores em meio à uma era de desmatamento e seca. Era literalmente hipnotizante….
Mas aí veio o elenco da primeira fase. Alguns já reconhecidos da telinha, outros novatos. Mas com uma capacidade incrível que representar os trejeitos de seus futuros sucessores da segunda fase de forma surpreendente. Letícia Salles na pele de Filó era uma crível Dira Paes jovem, enquanto Renato Góes incorporou até a fala pausada de Marcos Palmeiras que se você fechasse os olhos era como se o próprio estivesse ali.
Aí veio a segunda fase e os talentos de ouro da velha guarda, trazendo consigo mais alguns novatos que não se deixaram estremecer pelo peso da bagagem dos colegas.
Com homenagens singelas e tão simbólicas, antigos atores da versão original fizeram suas aparições durante a primeira fase, segunda ou ainda no episódio final, conectando duas eras de forma tão amável e delicada que era quase como uma colcha de retalhos preparada carinhosmaente pela avó para seus netos.
No meio disso, uma homenagem belíssima ao já falecido Cláudio Marzo com a comitiva fantasma, que abriu muitos sorrisos invisíveis e tocou até o coração dos peões mais brutos.
Já quando o assunto é adaptação aos novos tempos, Bruno Luperi também conseguiu traçar um cuidadoso trabalho de ajustes sem ferir a trama. Botou a tecnologia no campo, trouxe a discussão LGBTQIA+ para a pauta e transformou a dupla Alcides e Zaqueu na meta de amizade fraternal de muita gente por aí, ressaltou o protagonismo feminino e interligou a ignorância rústica do interior à modernidade urbana sem descaracterizar nenhum lado e sem desrespeitar tbm nenhum deles. Foi tão gostoso de ver. E falar de Alcides e Zaqueu é o grande ponto alto porque retrata com perfeição esse lado. Opostos, criados em mundos totalmente diferentes, mentes diferentes, sem maldade, maltratadas e com sua própria história e defesa natural, mas ainda assim abrindo espaço para aprender a respeitar e conviver. Ou a própria transformação de um Zé Leôncio jovem e machista em um pai mais compreensivo, conciliador e tentando se abrir para o novo. Foi primoroso. Assim como a relevância que Isabel Teixeira trouxe para o papel na mulher numa sociedade ainda machista com a transformação de Maria Bruaca.
Com tantos personagens ricos e que trazem contribuições especiais, eu poderia passar a noite falando de cada um deles. Mesmo aqueles do elenco de apoio, mas também tão especiais que aos poucos pareciam ser parte da nossa própria família, entrando na nossa casa toda noite e a quem já conhecíamos melhor do que muito. Parente de sangue…. Mas nada nos fará esquecer tão cedo ele: o véi du riu! Ah este mestre Osmar Prado… Que presença!
E que delicia ver Almir Sater e seu filho atuando juntos em uma batalha de violeiros de arrepiar.
Sim, pois a música foi outra grande personagem dessa novela. Finalmente uma novela que deixou de lado o top 5 do momento para trazer à trama composições que embalava a história em cena, independente do ano da música ou sua fama.
E sem dúvida o nosso “Pantanar” trouxe seus memes, expressões e fases memoráveis…..
Claro que nem tudo é perfeito e algumas das transformações de Juma foram meio forçadas, assim como a morte de Tenório pra mim ficou devendo um pouco….
Mas nada vai superar a beleza e emoção de um capítulo final impecável e tão emocionante, do encontro de Zé com o Velho do Rio, a transformação de gerações com uma sensibilidade única e o velório de derrubar até os mais valentes em um balde de lágrimas com uma homenagem tão bela. Já Faz mais de uma hora que a novela acabou e ainda estou aqui, refletindo sobre a beleza de uma obra tão atemporal e simbólica.
Acompanhar esse revival foi como ler um daqueles livros deliciosos que prende sua atenção do início ao fim, faz você se afeiçoar aos personagens e deixa um buraco no peito quando você vira a última página…
Agora eu já posso voltar às séries e filmes, dormir mais cedo e sair sem me preocupar se perdi um capítulo…
Mas aaaara… Já tô com sardades do meu Pantanar. Larga mão…