E se a vida de repente se tornasse tão perfeita que seria possível enxergar nela motivo para a felicidade?
Com essa dinâmica entre as tantas possíveis para começar este texto sobre o longa “Bliss: Em Busca da Felicidade”, Owen Wilson e Salma Hayek entregam uma crítica disfarçada de sci-fi e nos transportam para a realidade mais incômoda que poderíamos enfrentar: aquela que vivemos todos os dias.
“Bliss” foi uma indicação da Carolzinha, uma amiga de anos com quem troco sugestões de filmes periodicamente durante a quarentena numa tentativa menos triste de mantermos contato enquanto as coisas não voltam ao normal para sentamos à mesa dela e saborear suas delícias, já que ela manda muito bem na cozinha. E a referência da indicação já dá uma boa ideia sobre a história: “Letícia, assisti um filme muito louco: Bliss”.
Pois é exatamente essa a primeira impressão. Até que, depois de um tempo, você começa a enxergar um milhão de metáforas escondidas na história e quando as letras dos créditos finais começam a subir você continua refletindo sobre tudo que acabou de ver ao som de You and I.
O longa conta a história de Greg, um Owen Wilson carregando os sinais do tempo em um papel que precisa disso para representar toda essência da pesada trajetória de um homem que está vendo a felicidade escorrer entre os dedos. ele entra na tela fazendo desenhos de uma casa com a qual sonha frequentemente e uma mulher misteriosa que não sabe de quem se trata. Grege separou da esposa, foi demitido do trabalho e está completamente perdido no rimo da vida, depressivo e tomando medicamentos para os quais não tem mais bula. É neste momento que ele conhece Isabel, Salma Hayek sempre inebriante e encantadora, que diz ao desesperado Greg vivermos numa realidade paralela. E justamente ela é a representação real da mulher que está nos sonhos de Greg. Até aí nada demais, só mais um filme representando a realidade na qual pelo menos metade das pessoas do mundo vivem hoje. Mas então você, do outro lado da tela, começa a ficar confuso ao notar personagens surgindo misteriosamente do nada na calçada oposta à janela do bar onde a dupla conversa.
A partir daí Greg é levado por Isabel em uma jornada orientada por “cristais” mágicos que são capazes de dar poder à eles para driblar o que não é real em seu mundo: força sobrehumana, felicidade, desapego total do tempo e uma paz constante, onde todos os problemas parecem simplesmente desaparecer. Mas quando não há cristais, a miséria e tristeza voltam à bater novamente na porta. De repente, quando ele começa a duvidar de Isabel, ela o leva até os cristais azuis, capazes de transportá-los de volta à verdadeira realidade, onde o casal de cientistas são parte de um experimento sobre a caixa neural.
Neste mundo paralelo, a humanidade superou o caos e viveu à base da perfeição. Não há miséria, não há problemas, mas a felicidade constante se tornou um estado de espírito tão comum que as pessoas ficaram incapazes de reconhecê-la. E para isso a Dra Isabel cria uma realidade paralela para a qual as pessoas podem ser levadas para experimentar o pior e, então retornar para a vida real sendo capazes de apreciar a perfeição como o estado de felicidade plena. Daí a frase inicial deste texto.
E agora você, lá do outro lado da tela, está se perguntando qual das duas realidades é, de fato, a verdadeira. E há um elemento fundamental para responder essa pergunta: Emily, a filha de Greg, papel que cabe à Nesta Cooper. Mesmo com todos os problemas do divórcio e da depressão, a garota não desiste do pai. Ela é o elo de ligação que faz o espectador entender o que é real de verdade ou não e todas as metáforas por trás do enredo. E este elo era, no caso de Greg, forte demais para permitir que Isabel o convencesse de que Emily não passava de uma ilusão. Mas e quando a realidade já se tornou tão distante para que nem mesmo essa corrente possa nos segurar?
A busca frenética de Greg por uma saída para sua constante infelicidade por meio dos cristais pode ser facilmente associado às drogas. O vício vem como um portal na tentativa de escapar de uma realidade que é incomoda demais para ser enfrentada. Começa com os amarelos, pequenos, em doses, até chegar aos azuis, capazes de transportá-lo totalmente para um mundo a parte. E essa incessante busca corrói não apenas Greg, mas todos á sua volta, inclusive sua família.
Quando Greg está em seu mundo perfeito, onde não há miséria, o dinheiro é bastante e compartilhado, a sociedade recuperou o planeta Terra, robôs fazem todas as tarefas chatas, casas são como paraísos e os maiores problemas se resumem à consertos de aquecedores de piscina, há um claro paralelo que qualquer ser humano em crise faz: será que uma vida com dinheiro resolve todos os nossos problemas e traz a tão desejada felicidade?
E é o antigo Greg, o Doutor, antes de entrar na “matrix” criada pela Dra Isabel, que responde suas questões. Mesmo com tudo que poderia desejar, ele não é feliz. Falta sempre alguma coisa.
Será que a própria Isabel realmente existe? Ou ela também é um elemento criado pela mente de Grer em sua fuga?
As interpretações são infinitas e podem render discussões infinitas, longas e altamente enriquecedoras, sobretudo em tempos nos quais a busca por dinheiro nunca foi tão sedenta. A corrupção está em todos os lugares, mas o motivo de seus crescimento – ele, o dinheiro – está realmente trazendo felicidade aos beneficiados?
Aqui entra a questão mais enigmática e recorrente da história do ser humano e sua eterna procura pela felicidade. A resposta, no entanto, é simples: a felicidade não é uma constante, mas sim um estado de ser. São momentos. E para existirem, precisamos conhecer o outro lado, a vida sem aqueles momentos, exatamente como dito sem rodeios pela Dra Isabel.
A verdade é que mesmo com todos os avanços científicos e tecnológicos, o ser humano ainda é egoísta demais e lamentavelmente imaturo, corrompido por anos de uma evolução social torta e desmedida (por favor, leia Sapiens) para ser capaz de enxergar uma condução mais positiva para tudo que foi capaz de conquistar.
Mas não sejamos hipócritas. Com ou sem drogas, há sempre dois lados convivendo dentro de cada um de nós o tempo todo, se perguntando o quanto vale nossa felicidade, assim como há dois Greg’s e duas Isabel’s. E Bliss também é sobre isso: sobre as decisões que tomamos. Quando o chefe de Greg morre, ele teve que tomar uma decisão. Quando conhece Isabel, teve que tomar uma decisão. Quando conhece os cristais, uma decisão. Quando percebe que tem poderes, decisão. Mas qual é a decisão certa? Qual a melhor escolha? A partir de qual ponto de vista? Estamos preparados para lidar com o ônus e bônus ou o efeito borboleta que há em tudo e todas as escolhas?
Emily consegue ser o elo mais forte e trazer Greg de volta para sua realidade. Mas quantos Greg’s conseguem se salvar?
É um filme para ser visto e sentido. Afinal, há Greg’s e Isabel’s em toda parte ao nosso redor. E talvez, sejamos nós mesmos vivendo uma constante fuga da realidade, sobretudo em tempos de pandemia, fome e caos…
Tem na AmazonPrime.
Paul damm
21 de junho de 2021 at 10:09Muito interessante! Sou leitor de seu blog, mas nunca comento, primeira vez! Gosto de suas análises.
Letícia Spinardi
21 de junho de 2021 at 11:59Que legal, Paul. Seja bem-vindo ao blog e fique à vontade para contribuir 😉