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Falcão – Meninos do Tráfico

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“Todos os bandidos que conheci, independente do documentário, sempre foram muito carentes. Sempre se mostraram contra o crime e inconformados de viver daquela forma. Para quem está de fora, a visão que se tem é da sem vergonhice, mas para quem ta dentro, é como uma praga jogada sobre eles, difícil de desatar. E, quando se tenta sair, é preciso ter recursos para alimentar a memória deixada pelo crime e pela corrupção, pois a polícia, uma vez que sabe que você já foi bandido, nunca aceitam a regeneração. (…) Esses jovens se tornam vítimas deles mesmos e acabam vitimando outras pessoas, na ciranda dos inocentes. Porque, como todos sabemos, aqui nessa guerra todo mundo atira, todo mundo fabrica munição, todo mundo cheira, fuma, todo mundo pratica a corrupção, só que todo mundo veste a máscara da inocência, a auréola dos anjos…” (Celso Athayde)

O livro Falcão – Meninos do Tráfico relata os bastidores do documentário realizado por MV Bill e Celso Athayde durante sete anos recolhendo depoimentos em favelas de todo o país, munidos apenas de coragem e vontade para contar a história de jovens que se perdem no mundo das drogas e da marginalidade.

Com uma abordagem profunda e dilacerante da realidade vivida nas favelas do Brasil, os autores escancaram os problemas sociais da miséria, do crime e da violência pelo ângulo de quem está no olho do furacão, entregando um material pesado e uma visão nua e crua daquilo que os tantos discursos não resolvem.

Vindos de uma realidade muito próxima à que documentaram, Bill e Celso buscaram em sua obra uma forma de denúncia social, com exemplos reais sobre um problema real. Fizeram parte do cotidiano do morro e conversaram com menores e famílias que vivem dia e noite sob a lente do perigo. Nesse contexto, o crime torna-se um universo próprio, um mundo com regras e leis próprias, em que a principal palavra de ordem é a sobrevivência.

O falcão é o menino que fica à espreita no morro, aquele que alerta a presença do inimigo ou da polícia. É aquele que não dorme, que não sossega, que atira e se preciso for, mata. Mas também é aquele que morre. São jovens sem nome, que perdem sua identidade para o crime, mas que sonham com uma vida melhor (a qual raramente terão).

Muitos buscam o tráfico para garantir o sustento da casa, a comida na mesa ou os desejos impostos por uma sociedade capitalista. Para outros, o tráfico torna-se uma trilha de sedução, em que se rendem aos delírios das drogas e de uma vida fácil, mas muitas vezes sem volta.
O mais surpreendente é que todos esses jovens têm consciência de sua escolha. Sabem que estão errados, que estão nessa vida porque optaram por ela, pelo atalho mais rápido e sem retorno.

É interessante notar como a ausência da figura paterna é uma constante na vida dos meninos, seja porque os pais já estão mortos ou porque abandonaram a família, ou ainda porque têm suas vidas consumidas pela rotina do tráfico de drogas, influenciando desde cedo os mais jovens a buscarem o caminho mais rápido para o dinheiro.

Mas a grande questão é que a marginalidade deixou de ser a busca pela sobrevivência para adquirir um aspecto de domínio social. Segundo os autores, como um fator histórico, a prática era tida como usual entre negros e os menos favorecidos financeiramente. Hoje, nota-se uma mudança social do cenário do tráfico, que deixou de ser a saída de emergência da classe baixa para ser dominado por jovens da classe média que esperam encontrar dinheiro fácil e uma vida de gana e poder. O crime, assim como a política, passou a representar grupos e interesses que disputam o poder em benefício próprio, sem sequer fingir um posicionamento camuflado. E assim, o lema que rege esses jovens é “matar ou morrer”, e o crime no morro deixa de ser uma opção.

Se tentam sair do buraco, muitas vezes são barrados pela própria cadeia do tráfico, ou pior, pela polícia corrupta, que contribui para a formação da guerra civil e a convivência com o medo nas favelas. A mídia, por sua vez, oferece uma visão muitas vezes distorcida e inconseqüente dos fatos, tornando a situação um espelho de dois lados, em que a versão transmitida cede ao conflito de interesses que domina os bastidores na notícia. Reduzir a idade penal, por sua vez, não é a solução. Não adianta castigar o crime. É preciso reeducar a sociedade para preveni-lo.

Com uma linguagem condizente à realidade retratada, a narrativa mostra seres humanos sendo consumidos por uma sociedade indiferente, que assiste sua própria degradação sem tomar providências, e a principal discussão passa a ser como encontrar uma forma de humanizar esses jovens marginais e rediscutir os conceitos de marginalidade sem apregoar discursos que buscam os culpados, mas não resolvem a questão.

Dos dezessete falcões entrevistados, dezesseis morreram durante a produção do documentário. O falcão sobrevivente, chamado de Forte, representa para os autores a esperança de resgatar meninos que por dentro ainda são apenas crianças, com os mesmos sonhos de qualquer outra.

Uma obra com descrições honestas, que chocam, assustam, mas nos situam frente à verdade do cotidiano. Um relato sincero e amargo, que faz com que os autores caminhem pelas vielas e becos da favela, sentindo o cheiro do sangue e a sede da liberdade junto às personagens reais.

Mais do que um complemente literário, Falcão – Meninos do Tráfico é um documento social, um estudo sobre a sociedade globalizada, as ações políticas e econômicas do país e a implacável realidade sobre a educação de toda uma nação.

“Meu sonho é ser palhaço. Quando eu fizer 18 anos, vou largar esse fuzil e procurar um circo…” (Forte)

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